Entrevista a Filipe Duarte Santos, coordenador do SIAM: «Estamos perante um desafio gigantesco»
Filipe Duarte Santos é o coordenador do projecto SIAM, que desde 1998 se dedica ao estudo do impacte das alterações climáticas em Portugal. O aumento das secas, e por outro lado das inundações, são algumas das consequências que podemos esperar do efeito de estufa. Mas a sensibilização ainda mal deu os primeiros passos e quase nada está a ser feito para enfrentar as novas realidades
Fotografia: Luís GalrãoO SIAM está neste momento a desenvolver um estudo sobre as alterações climáticas nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, a lançar em Outubro. Já é possível adiantar alguns resultados dessa investigação? No primeiro estudo do SIAM apenas considerámos Portugal continental, daí a necessidade de o completar. Mas prever fenómenos climáticos para ilhas não é uma tarefa fácil. Já para o continente foi complicado, uma vez que as previsões são feitas com recurso a modelos de circulação geral da atmosfera, que têm uma malha que abrange 300 km. Havia apenas três pontos que se sobrepunham ao território português, pelo que foi necessário usar modelos regionais, que têm uma malha na ordem de 50 km, mas o que ainda assim não funciona para uma ilha. Houve que criar uma metodologia específica para os arquipélagos, que já está publicada em revistas científicas, e é a que vamos utilizar neste projecto para a Madeira. O que concluímos é que o arquipélago é particularmente vulnerável às alterações climáticas. Para além do aumento da temperatura média, a temperatura máxima e mínima têm estado a crescer bastante nas últimas décadas. Em Portugal continental o crescimento é na ordem dos 0,47, quase meio grau centígrado por década, mas na Madeira há um maior aumento da temperatura nas últimas três décadas. Os modelos apontam ainda para uma redução significativa da precipitação, o que terá certamente consequências na disponibilidade de recursos hídricos, na floresta e na biodiversidade. Nos Açores os impactes serão menos significativos.
Isso terá a ver com a localização do arquipélago, mais a Sul e mais árido? No fundo, a região climática em que a Madeira está localizada não é a mesma que a Península Ibérica. No caso dos Açores, os dados indicam que não há uma variação muito significativa da precipitação. Apesar de haver uma certa incerteza nestes cenários do clima, projecta-se que esse aumento da temperatura seja muito mais pronunciado nas zonas do interior do continente do que nas zonas costeiras. As regiões continentais estão menos sujeitas à influência oceânica. Mas aquilo que é mais significativo é o aumento da frequência de fenómenos climáticos extremos. Os modelos indicam que estes se vão tornar mais frequentes no futuro, o que significa, para o caso de Portugal, um aumento do risco de secas. Além disso também um aumento de episódios de precipitação muito intensa, Invernos em que chove muito em intervalos de tempo muito curtos, o que traz associado o risco de cheias.
Mas as ilhas de uma forma geral não são mais vulneráveis? As ilhas que têm zonas de muito baixa altitude são das regiões mais vulneráveis no planeta às alterações climáticas, cuja protecção vai exigir um investimento financeiro muito grande. É o exemplo das Marshall e do Tuvalu. Em geral as ilhas também são vulneráveis por causa aos recursos hídricos, porque os aquíferos podem ser afectados pela intrusão salina, com a subida do nível do mar. Mas no caso dos Açores e da Madeira, o fenómeno da erosão que irá dar-se não será muito importante, excepto talvez em Porto Santo.
A seca que se vive actualmente no país é um sintoma das alterações climáticas? A seca que afecta neste momento Portugal e Espanha é a mais intensa e com menor volume de precipitação desde que há registos nas estações meteorológicas dos dois países, desde meados do século XIX. A precipitação anual acumulada é a mais baixa dos últimos 70 anos. Não se pode dizer que seja uma consequência directa, mas a ocorrência de fenómenos mais severos coincide com as previsões.
Até que ponto é que se pode considerar que os incêndios florestais destes últimos Verões, desde 2003, são consequência das alterações climáticas? Evidentemente que a seca também facilitou a ocorrência de fogos e criou condições para que os incêndios tivessem maior intensidade e ardessem vastas áreas. Uma das características deste ano é que apenas 5% dos incêndios consumiram 85% da área ardida. Significa que houve muitos fogos em que a situação ficou completamente incontrolada. A capacidade de controlarmos um incêndio é relativamente grande durante a primeira meia hora, mas se não os extinguirmos o incêndio pode ficar incontrolável, devido ao aumento das temperaturas. Houve incêndios que consumiram 8 mil hectares, no concelho de Leiria. Acho que as condições anómalas contribuíram para uma maior gravidade dos incêndios. A prevenção tem sido muito insuficiente. E não sabemos quando vai chover, não temos capacidade de previsão a esse nível.
Porque é que foi escolhido este cenário para o primeiro estudo do SIAM? Usámos os modelos mais globais, desenvolvidos pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), em conjunção com um modelo regional para a Europa, do Harley Centre, tanto no SIAM I como no II. A diferença é que no II utilizámos cenários com diferentes projecções no que respeita às emissões de gases com efeito de estufa (GEE), mais ou menos pessimistas. Inicialmente considerámos vários modelos que dão resultados bastante semelhantes para todo o Sul da Europa mediterrânica, com uma diminuição e redistribuição da precipitação ao longo do ano.
O conhecimento científico que o SIAM adquiriu tem estado a ser vertido para as leis e planos que têm sido aprovados em Portugal? Eu creio que se tem feito muito pouco. Há dois sectores em que se podia fazer mais: um é a prevenção dos incêndios. Acho que vivemos uma situação vergonhosa para nós portugueses, se nos compararmos com países próximos e que têm o mesmo tipo de clima e de floresta. A outra área em que se podiam começar a tomar medidas mais empenhadas é nas zonas costeiras. Há uma perda de terreno por erosão e é preciso identificar as zonas onde vai ter de haver uma retirada e os troços de costa que será necessário proteger. O Algarve, sobretudo da praia do Ancão para Leste, até Vila Real de Santo António, é das zonas de maior risco. Penso que no sector da saúde tem sido feito um bom trabalho. Foi montado um sistema de alerta para as ondas de calor que tem funcionado. No que respeita aos recursos hídricos, estamos perante uma situação muito grave. Espanta-me que, ao contrário do que se passa em Espanha e em França, em Portugal não se fale sobre medidas de poupança da água para encarar a eventualidade de chegarmos ao fim do ano com uma precipitação extremamente reduzida.
Num mau ano hidrológico, com menos produção eléctrica nas barragens, o consumo de combustíveis dispara... A nossa dependência dos combustíveis fósseis varia de ano para ano por causa da variabilidade do nosso clima. Nos anos em que a precipitação é baixa, a factura que temos de pagar pela energia é mais elevada. Mais de 90% das fontes primárias de energia em Portugal serão este ano os combustíveis fósseis. É preciso investir nas renováveis. Tem sido feito um grande esforço no que diz respeito à energia eólica, mas no que respeita à energia solar a evolução não é muito positiva.
Que avaliação faz do Plano Nacional das Alterações Climáticas? O Plano Nacional para as Alterações Climáticas preocupa-se sobretudo com a redução das emissões. Mas temos de começar a planear e a aplicar medidas que minimizem os impactes. E aí não há uma acção organizada que procure articular os diferentes sectores, excepto acções pontuais, como a do Ministério da Saúde. As acções concretas de mitigação são extremamente limitadas, e sobretudo não existe informação sobre o que se conseguiu ou não conseguiu. Existem países na União Europeia que, relativamente ao cumprimento do protocolo de Quioto, estão tão mal ou pior que nós. É o caso da Espanha ou da Irlanda. Mas Quioto – se o protocolo for bem sucedido a redução de emissões vai ser de apenas 5% para os países desenvolvidos, e excluindo os EUA, que emitem 25 % dos GEE a nível global – é uma gota de água. Aquilo que está escrito na Convenção Quadro para as Alterações Climáticas, como objectivo, é que se evite uma interferência antropogénica perigosa sobre o sistema climático. A concentração de CO2 (dióxido de carbono) antes da Revolução Industrial era de 290 partes por milhão, e hoje em dia está quase nos 380. Para chegarmos a esse patamar é necessário que as emissões atinjam um máximo e depois comecem a decrescer. É um desafio gigantesco, porque terão de ser também as emissões dos países em desenvolvimento.
Temos uma China e uma Índia em franco crescimento e com mais de um terço da população do planeta... Exactamente. O nosso paradigma de desenvolvimento é suportado num consumo elevado de energia combustível, carvão, petróleo e gás natural. Quanto mais tarde atingirmos o máximo maior vai ser o valor de concentração do CO2. Era desejável que esse máximo ocorresse o mais cedo possível. O consenso que tem sido gerado é de que seria desejável que a temperatura não subisse mais que dois graus centígrados relativamente ao período pré-industrial. Durante o século XX a temperatura aumentou cerca de 0,6 graus. Ainda deverá aumentar qualquer coisa como 1,4 graus. Se o máximo se fixar nos 580 partes por milhão de CO2, a temperatura já vai subir mais que dois graus. Se o máximo apenas ocorrer daqui a uns 50 anos a concentração será muito maior e aí o impacte sobre a biodiversidade e sobre as pessoas será muito maior também. A uma escala de milhares de anos podemos afectar muito a biodiversidade, extinguir grande número de espécies. No que respeita ao clima, a certa altura o sistema readapta-se, mas isso é numa escala de tempo da ordem de mil, dois ou três mil anos. Os impactos negativos que se prevêem até ao fim deste século são já elevadíssimos.
Quer dizer que no espaço de 100 anos teremos a nossa qualidade de vida comprometida? Isso com certeza. Tenho colegas cientistas que, ao ver a situação de seca em Portugal e Espanha, se confessam surpreendidos, porque as coisas se estão a passar muito mais rápido do que eles esperavam. O que se tem observado nos últimos 40 anos é uma maior frequência de secas e esta é a mais violenta de que há registos. Aquilo que estamos a viver agora poderemos viver de novo daqui a poucos anos, cinco ou dez. E são fenómenos que têm um custo elevadíssimo, que é algo de que não se fala muito. Tudo isto empobrece o país. Na agricultura tem sido dramático. Este ano a produção de cereais é baixíssima. Cada vez mais se discute, não tanto em Portugal mas por exemplo em França, se fará sentido investir numa agricultura que requer o uso intensivo da água. É necessário começar a fazer opções.
Até que ponto é que a tecnologia nos pode ajudar a resolver este problema? Assume-se que algumas tecnologias que estão a ser estudadas, nomeadamente o uso do hidrogénio, serão só para daqui a décadas. Fala-se muito das energias renováveis. Mas se pensássemos que, por exemplo, o consumo energético de uma cidade como Lisboa seria assegurado apenas por fontes renováveis era muito complicado. Se pensássemos apenas em energia solar, teríamos de ter uma capacidade de captação enormíssima. O paradigma da nossa civilização pressupõe o consumo elevado de energia, que aliás é muito superior ao aumento da população. São problemas que não têm solução fácil, mas também há sinais positivos. É evidente que é necessário investir mais em energias renováveis, em energia solar, eólica, na energia das ondas e das marés, na biomassa. Existem muitas oportunidades. O hidrogénio parece uma boa fonte, mas tem de ser produzido, e para isso temos de consumir energia. É um problema complexo.
Qual é o papel da energia nuclear perante este cenário? A energia nuclear desempenha hoje um papel significativo. Mas penso que no futuro não será provavelmente a cisão nuclear a desempenhá-lo, mas a fusão nuclear. A União Europeia está a investir no ITER, um reactor internacional que vai ser localizado em França e irá estar a funcionar daqui a 15 anos. É uma experiência para o futuro. Mas só daqui a 30 anos se saberá se é realmente possível ter um reactor comercial daquele tipo. Também não sabemos exactamente como vai ser a evolução da população mundial. O que sabemos é que o preço do petróleo vai continuar a subir, é praticamente inevitável que o preço continue a subir indefinidamente, a menos que surjam energias mais baratas. Iríamos criar um problema muito grande se fechássemos as actuais centrais de cisão nuclear. Quanto a investir em novas centrais, no caso de Portugal penso que a oportunidade não existe, mas penso que nos países mais desenvolvidos do mundo a energia nuclear é importante. Em França é 70% da electricidade. Aquilo que a Organização Mundial de Energia prevê é a diminuição do peso da energia nuclear no “mix” global. Num prazo de 50 a 60 anos é inevitável encontrarmos outras formas de energia.
A Agência Europeia de Ambiente, num estudo recente, concluía que por mais que se desenvolva a tecnologia vamos ter de alterar os nossos padrões de vida para deter a degradação do ambiente. Não me parece é que haja uma suficiente consciencialização das pessoas para se poder fazer reduções de consumo. Podíamos ter provavelmente uma qualidade de vida comparável à que temos hoje em dia com menor consumo de energia, mas isso dependia de um trabalho muito árduo de sensibilização. Existe em muitas pessoas a percepção de que as fontes de energia são inesgotáveis, assim como outros recursos, como a água. É preciso uma outra cultura.
Como é que um cientista que se dedicou durante vários anos a um projecto de investigação sobre as alterações climáticas, que envolve especialistas das mais diversas áreas, encara que ainda haja cientistas que simplesmente negam a existência do fenómeno? Na literatura científica essas pessoas são chamadas de “contrarian”. Uma das poucas bóias de salvação dos “contrarian” era uma discrepância que existia entre a medição da temperatura da troposfera ou por meio de satélites. Há artigos publicados na revista Nature de Agosto em que se reanalisaram os dados dos satélites e se chegou à conclusão de que havia erros sistemáticos nas medições e portanto não havia nenhuma discrepância, o que significa que o aumento da temperatura é real. Este era um dos últimos sustentáculos da negação de que se esteja a observar um aumento da temperatura. De um modo geral, penso que as posições que alguns cientistas têm tomado até são úteis, porque fomentam o debate. O que posso dizer é que cada vez há um número maior de cientistas que concorda que a humanidade está a interferir com o sistema climático através das emissões de GEE. Há também um artigo recente da Science, de uma investigadora da área da sociologia da ciência, que fez uma análise, durante os últimos anos, de todos os artigos publicados em revistas científicas, e quase não havia um artigo que defendesse o contrário. É consensual que nós estamos a fazer é a alterar a composição da atmosfera. É preciso ter em conta as implicações políticas de certas conclusões científicas. Está provado que muitos “contrarians” têm apoio de organizações ligadas à indústria do petróleo.