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«Os media analisaram sempre mal as catástrofes ambientais»
Luísa Schmidt, socióloga e jornalista, dedica-se há vários anos à análise dos problemas ambientais do país, sem descurar a sua dimensão social. Escreveu “Ambiente no Ecrã”, um estudo exaustivo que analisa a forma como a RTP viu o ambiente ao longo de 40 anos. Esse trabalho deu origem à série televisiva “Retrato Ambiental de Portugal”, que a televisão pública acaba de transmitir. É uma das fundadoras do Observatório do Ambiente e em 2002 foi distinguida com o Prémio de Comunicação Ambiental das Nações Unidas.

Entrevista a Luísa Schmidt, jornalista e socióloga do ambiente
Quercus Ambiente - A sua formação foi essencialmente focada na área da sociologia. Como é que aparece o ambiente?
Luísa Schmidt - As questões do ambiente surgiram por via da minha actividade jornalística. Durante bastante tempo tratei da área da defesa do consumidor no Expresso, e o ambiente era como que o reverso da medalha da sociedade de consumo em que estávamos a viver.
Portugal só entrou realmente no mercado do consumo nos anos 80, e sobretudo com a adesão à UE. Na altura a defesa do consumidor era extremamente importante, porque as pessoas viam-se confrontadas com produtos que chegavam das sete partidas do mundo, com uma grande máquina publicitária, perante a qual não tinham capacidade de defesa. É uma década em que os problemas ambientais se agravam muito. Há um aumento da produção de lixo, do desordenamento do território. Comecei a ter uma coluna que se chamava “Qualidade de Vida”, em que alternava artigos sobre defesa do consumidor com artigos sobre questões ambientais. E comecei a apaixonar-me pela área do ambiente.

QA - Este programa que acaba de ser exibido pela RTP partiu de um trabalho académico em que faz uma retrospectiva para perceber como é que a televisão abordou, ou não abordou, os problemas ambientais do país ao longo de 40 anos. Mas para o realizar teve de fazer também muito trabalho de campo. Nesse percurso pelo país de hoje, o que a marcou mais?
LS - O que mais me espantou foi a prevalência e o agravamento dos problemas, tirando obviamente o saneamento básico e o abastecimento de água. Mas mantêm-se os mesmos vícios e erros. A poluição dos recursos hídricos continua e o problema do desordenamento tem-se agravado exponencialmente. Por outro lado, espanta-me a ausência de continuidade nas políticas. Há uma interrupção constante em qualquer tipo de política, que não cria memória e que acaba por originar problemas maiores. Desperdício de dinheiros e fundos investidos sem fiscalização sobre o investimento. Foi o que aconteceu com as tentativas de despoluição de rios como o Ave ou o Lis. O que nos mostra que não basta o dinheiro e a técnica para resolver estes problemas, a solução depende também das pessoas que têm a responsabilidade política e das populações.
Estive a analisar o arquivo da RTP desde 1955 e fui procurar de que forma é que os problemas ambientais eram vistos nos interstícios da programação, porque se fosse à procura dos programas de temática ambiental não encontrava nada. O ambientalista era sempre um palerma de alpercatas que andava à procura do passarinho. Também havia muito aquela ideia de que nós nunca temos problemas, de que os outros países é que têm. A ideia de que éramos um país rural. Estereótipos que ainda hoje existem e que ajudam a explicar a mentalidade que muitas pessoas em Portugal ainda têm. Pesquisei o arquivo e daí é que veio a construção do programa.

QA - Como é que se pode garantir a continuidade do trabalho num sistema em que os governos são eleitos de quatro em quatro anos e em que às vezes duram até menos?
LS - Tem de haver uma estratégia para o país que passe pelo investimento em políticas públicas. Tem de haver uma espécie de pacto de regime, encarado como um desígnio nacional. No caso dos rios, por exemplo, ponha-se em prática a gestão por bacia. O mesmo para os parques naturais. Não se vai desenvolver uma política ambiental sem se ensaiar novos modelos de gestão. O ambiente é um desafio porque obriga não só à inovação na tecnologia, mas também nas relações humanas e a formas de gestão novas. O Estado tem de ter uma actividade reguladora e fiscalizadora muito forte. Na área do ambiente tem ainda um papel muito importante a desempenhar, porque é o interesse público que está em causa.

QA - Mas nunca o país foi tão planeado. Existe uma autêntica “febre de planos”, desde os planos directores e planos de pormenor aos planos de ordenamento, planos e estratégias nacionais… Todos têm uma fase de consulta pública. Mas até que ponto é que a linguagem técnica em que eles são redigidos consegue chegar à população?
LS - Não consegue. Nós temos um défice informativo muito grande nesta matéria. As pessoas vivem num clima de desinformação generalizada sobre matérias às quais têm de dar resposta. Mas mesmo que as pessoas se queiram informar é extremamente difícil. Cada vez que a pessoa quer saber alguma coisa há inúmeros obstáculos que se levantam. A nível da administração, nas empresas, etc. Estes planos, como o Plano Nacional de Combate às Alterações Climáticas (PNAC), vão afectar a vida das pessoas, mas elas continuam “a Leste” destes problemas. As pessoas chegam às consultas públicas, perdem o seu tempo, dinheiro e energia para dar a sua opinião, e depois acaba por não ter resultado nenhum. A ineficácia da participação é muito desmobilizadora. As questões sociais são extremamente secundarizadas. E quando os planos vão a discussão é sempre nas pessoas que encalham.

QA - Que papel cabe aos órgãos de comunicação? O de fazer a ponte sobre este fosso social?
LS - Os órgãos de comunicação acabam por ter uma fatia de leão no nosso espaço público. Cumprem uma tarefa de ligação entre o cidadão, o Estado e as instituições. As pessoas não vão para os tribunais, porque sentem que acabam por perder muito tempo e ter poucos resultados. Os media acabam por ser uma espécie de arautos da cidadania, o que no fim de contas faz parte da sua natureza. Mas às vezes deixam muitas coisas de fora. Todos os dias chegam milhares de notícias às redacções a quererem ser as primeiras a entrar nos jornais. É preciso haver outros espaços para as pessoas se manifestarem.

QA - O ritmo das redacções é difícil de conciliar com uma análise cuidada dos problemas, e quem o quiser fazer trabalha de uma forma quase clandestina e paralela face ao resto das tarefas imediatas que tem a cumprir…
LS - A investigação é fundamental para se fazer jornalismo, sobretudo numa área como a do ambiente que é extremamente complexa, tem componentes científicas e mexe com interesses políticos e outros. Muitas vezes não há interesse em que estas áreas sejam investigadas porque são incómodas. Os grandes grupos económicos responsáveis pelos grandes empreendimentos são muitas vezes também detentores das empresas de comunicação social. E ainda mais quando é uma área que mobiliza as pessoas, e em que se podem criar grandes bolas de neve a partir de pequenos factos. Mas a verdade é que as pessoas têm cada vez maior apetência pelas questões do ambiente e reagem positivamente quando as vêem tratadas nas televisões.

QA - Qual a mais-valia da televisão na abordagem dos problemas ambientais?
LS - A televisão tem um papel hegemónico no nosso país e em termos de linguagem tem um poder fortíssimo. Eu até fiquei espantada com as reacções que tive ao programa. Os jornais atingem públicos muito importantes e, muito provavelmente, os decisores. Mas na capacidade de chegar às pessoas e de as mobilizar nada chega à televisão. Imagem, som, movimento são coisas muito fortes que se podem utilizar. Em Portugal, num meio em que se vê muita televisão, esta é muito importante na vida das pessoas. Não é por acaso que uma televisão não tem programas ambientais desde 1972, a não ser o “Planeta Azul”. O serviço público está a dar sinais que não dava há muito tempo. Mas vivemos tão à míngua que achamos um espanto passar um programa documental sobre Portugal na RTP 1, que é o caso do “Retrato Ambiental”.

QA - No seu livro, “Ambiente no Ecrã”, conclui que nos últimos anos a tendência é para que os programas de índole ambiental passem mais durante a manhã ou a tarde do que à noite, em horário nobre. São sobretudo programas dedicados às crianças e jovens, como os documentários sobre a vida animal. O seu programa será uma excepção.
LS - Pode haver uma tendência para mudar. É uma facilidade reduzir a temática ambiental ao “animalzinho”. A televisão também diversificou os seus horários, e os programas ambientais, os poucos que havia, foram sendo remetidos para mais cedo. Houve o “Há Só uma Terra”, em 1972”, e o “Ambiente, Homem e Ecologia”. E depois o “Planeta Azul”, que passava ao domingo à uma da tarde. É preciso ser-se muito militante para ir ver um programa num horário desses. O ano de 1972, na primavera marcelista, em que houve a Conferência de Estocolmo, foi muito especial. Em termos noticiosos, como começou a haver muitos problemas, começou a haver muita matéria. Os noticiários aumentaram bastante as notícias sobre ambiente. Hoje em dia não há noticiário em que não se fale de um problema ambiental.

QA - Há uma passagem do seu programa em que aparece a presidente da Associação Industrial, numa mesa-redonda em 1989, a defender as empresas poluidoras com um discurso que hoje já não faria muito sentido, baseado nos argumentos do desemprego e da fome.
LS - Era a “Hora da Verdade”. Sim, hoje já não há coragem para defender publicamente na televisão que “sempre é preferível uma morte mais lenta”. Os empresários hoje têm muito mais cuidado, até porque estão obrigados a cumprir normas e directivas que antes não existiam. Também já ficou à vista que essa ideia de defender as indústrias por defender, mantendo-as com a mesma tecnologia obsoleta, é um equívoco. Se as empresas não se adaptam às exigências ambientais, o mais certo é que passado pouco tempo as fábricas fechem e as pessoas percam o emprego e os recursos. Se for declarada a falência os empresários ficam com os fundos e não têm sequer de pagar indemnizações. É o que vai acontecer com a refinaria de Leixões.

QA - No livro “Portugal Ambiental” fala de um conjunto de obstáculos que persistem resistentes à eficácia administrativa e legislativa. Diz mesmo que aprendeu a identificar alguns dos nomes que cultivam esses obstáculos, e que deles beneficiam. Que obstáculos são esses?
LS - (Risos) É evidente que há uma resistência passiva intencional por parte de muitos agentes económicos em certas matérias. Acho que na sociedade portuguesa, e isso é um sinal de esperança, já se sente as duas coisas: também há empresários que querem optar por um modelo mais sustentável de desenvolvimento e sentem uma grande inércia a puxá-los para trás. Há quase dois países que coexistem, porque também há aqueles que continuam a olhar para o país como se fosse a sua própria quinta. Ainda há muitas forças de bloqueio. A ligação entre interesses políticos e económicos é evidente, seja na construção, no sector das águas… mas penso que os interesses urbanísticos são um grande problema que estamos a atravessar neste momento. Porque a água pode-se despoluir, mas o território é mais difícil de recuperar.

QA - Serão esses interesses que estarão por detrás de certas reformas legislativas, como esta que se prepara agora, da REN e da RAN?
LS - Sabemos que esses terrenos, só porque não são urbanizáveis, valem imenso dinheiro. Imaginem a multiplicação do preço do metro quadrado. Mas a REN foi um instrumento mal entendido. Agiu-se como se fossem áreas protegidas, e não são. A concretizar-se tal como existe em proposta é uma coisa disparatada, que não faz sentido nenhum. Quem tem mais poder é quem faz mais coisas na REN, e elas continuam a ser feitas.

QA - O estudo que fez sobre a programação da RTP vai até 1995, depois no livro estende a abordagem até ao ano 2000. Onde é que, algures nesse período, surge o “chavão” do desenvolvimento sustentável?
LS - Em Portugal? Ainda não apareceu! É algo que se diz, mas que não se compreende bem. É um conceito que tem a ver com a Conferência do Rio, mas sobretudo com Joanesburgo. É uma expressão que está a entrar no vocabulário, mas não sei se está já a entrar nas mentalidades. Não vemos nada sobre a Estratégia Nacional do Desenvolvimento Sustentável na televisão. É um documento que está supostamente em discussão pública e é uma estratégia importante para o país.

QA - Há vários sintomas sociológicos típicos face aos problemas ambientais. O “não no meu quintal”, por exemplo, ou aquela frase que é muito utilizada, que é o “sozinho não posso fazer nada”. Qual foi a evolução destes sintomas no período de tempo que estudou?
LS - Como se falou pouco também não aparece muito evidenciada. Temos uma cultura muito fragmentada, em que as pessoas não percebem muito bem qual é o seu papel. A ideia de que as pessoas sozinhas não podem fazer nada é um equívoco, porque elas sozinhas podem criar movimentos. Há um fundamentalismo do betão e do desmazelo que é fatal ao país.
É preciso inverter completamente a noção de fundamentalismo. E por isso é que nestes programas eu tentei não pôr ambientalistas no sentido estrito do termo. Porque achei que era importante pôr outras pessoas a falar de ambiente, como os políticos ou os cientistas. Porque os estereótipos que se associaram aos ambientalistas podem funcionar como obstáculos e criar uma contracultura ambientalista.

QA - Até que ponto é que grandes catástrofes ambientais, como os incêndios florestais em 2003 e 2004 em Portugal, vistas através da televisão, têm reflexos junto das populações?
LS - A questão é que essas catástrofes foram sempre mal tratadas nos seus aspectos ambientais, e daí que acabem por ter pouco efeito. Nos incêndios, atribuiu-se culpas ora aos proprietários, ora aos bombeiros… ninguém contabilizou a riqueza natural que se perdeu. Há um problema de fundo que não foi tratado. Foi ridículo o tratamento que se fez do naufrágio do Prestige, com aquela ideia de que o mar acabava ali e que aqui já não era… foi tratado de uma maneira tão hipócrita em termos comunicacionais que acabou por não ter efeito praticamente nenhum. E a prova é que passado um ano não se tinha feito nada. O efeito da catástrofe depende da maneira como se aproveita a sua ocorrência.

QA - Como está a decorrer o trabalho do Observatório do Ambiente? Qual o balanço dos resultados obtidos até agora?
LS - Temos um inquérito regular, que vamos repetir em 2005, às representações, valores e atitudes ambientais dos portugueses. Temos agora também uma linha de investigação sobre as autarquias e a política de ambiente. As pessoas manifestam de uma forma geral a necessidade de estar mais informadas. Já houve dois inquéritos, com o do próximo ano já temos uma comparação de 1997 a 2005.

Carla Gomes
QUERCUS Ambiente n.º 10 (Outubro/2004)
 
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