«Estamos cada vez mais perto da previsão dos sismos»
Há 250 anos, o maior sismo de que há memória na Europa e um dos maiores do mundo assolava Portugal. A maioria das vítimas foi arrastada pelo maremoto que galgou o estuário do Tejo e atingiu a cidade de Lisboa, nesse fatídico 1 de Novembro de 1755. Ainda não podemos prever quando voltará a acontecer uma catástrofe semelhante, mas os cientistas portugueses têm vindo a estudar o “respirar” da terra para conhecer as causas e as circunstâncias em que ocorrem os sismos e os tsunamis, como aquele que em 26 de Dezembro provocou centenas de milhares de mortes no Sudeste Asiático.
Entrevista ao geólogo Pedro Terrinha, especialista em tectónica
Sob a coordenação de Luís Matias, um grupo de especialistas prepara-se para estudar as dinâmicas sísmicas da nossa costa através de modelos matemáticos. Pedro Terrinha é um dos investigadores do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa que todos os anos observam o fundo do mar em busca de novas pistas. O facto de haver falhas que estão muito silenciosas «é motivo de preocupação», reconhece.
Quercus Ambiente – No âmbito dos projectos de investigação sobre sismos e tsunamis em Portugal, em que estudos tem estado envolvido? Pedro Terrinha - O grupo da Tectónica, ao qual eu pertenço, são as pessoas que estão mais envolvidas em trabalhos de Sismo-tectónica. Estou a colaborar numa exposição que vai haver para assinalar a efeméride dos 250 anos do sismo de 1755, em Outubro. Tenho participado no reconhecimento da margem portuguesa. As isossistas do sismo são grosso modo paralelas ao contorno da costa portuguesa, o que leva a crer que a fonte principal tenha estado mais ou menos a Sudoeste do Cabo de São Vicente. O que temos feito desde 1992 tem sido colaborar em projectos que visam determinar as fontes sísmicas. As profundidades junto da nossa costa são grandes, na ordem dos quatro a cinco mil metros, o que requer sempre algo mais do que os olhos e o mapa do geólogo...
Aí entra a tecnologia... No Verão de 2004 participou numa campanha de observação nessa zona, no navio de investigação “D. Carlos I”. Pela primeira vez foi usada uma sonda acústica multifeixe. Os dados de que dispúnhamos até aqui eram dados de batimetria, da altimetria da forma do fundo do mar, mas de muito baixa resolução. A primeira campanha de oceanografia foi feita já com o intuito de investigar o sismo de 1755, em 1992, com uma equipa italiana do Instituto de Geologia Marinha de Bolonha. Na altura fez-se um perfil do que se considerou que seria a fonte do sismo (a falha Marquês de Pombal). Mais tarde arrancou um novo projecto com eles, cuja direcção era de Mendes Victor, o Big Source Earthquake and Tsunami (Big Sets), em 1998, foi feita nova campanha em Novembro, que é o mês ideal para navegar na nossa costa, depois a partir daí todos os anos se fez trabalho de campo.
O que é que a campanha do “D. Carlos I” trouxe de novo em relação aos estudos anteriores? A grandes profundidades, apenas é possível observar os fundos com métodos acústicos, e o “D. Carlos I” usou uma sonda acústica “multifeixe” que emite impulsos que viajam até ao fundo do mar e são reflectidos de volta à sonda, o que nos dá a distância a que cada feixe encontra o fundo do mar e uma ideia da sua constituição geológica. Podemos saber se o substrato é duro ou se é brando, e podemos ajuizar do tipo de acontecimento sedimentar que houve, como deslizamentos de terras, o que é importante. No tsunami da Nova Guiné em 1999, que provocou bastante destruição embora fosse muito localizado, a fonte, creio, terá sido um deslizamento submarino de terras.
Mas isso permite-nos fazer uma previsão? Não nos dá a previsão, mas permite-nos saber o que aconteceu. E sabendo isso podemos saber que pode voltar a acontecer. Hoje em dia fala-se muito em instalações de monitorização submarina, e é muito importante saber que tipo de fenómenos de sedimentação acontecem no fundo do mar. Através de levantamentos da superfície do fundo do mar, como o do “D. Carlos I”, podemos desenhar perfis verticais de alta resolução. E não é nada que não tenhamos. Esta tecnologia existe nos vários países que têm trabalhado em Portugal, como Itália e Espanha, mas nós também a temos. A interpretação depois é feita pelos geólogos e geofísicos.
Mas as campanhas que são referidas como as mais significativas tiveram sempre como objectivo identificar a fonte do sismo de 1755. O sismo de 1755 tem um paradoxo associado. A nossa margem continental oeste foi vulgarmente designada ao longo das últimas décadas como uma margem passiva, assísmica. Aqui os sismos em geral não têm uma elevada magnitude, mas há alguns de registo histórico que têm magnitudes semelhantes aos das regiões críticas como os Estados Unidos ou o Sudeste Asiático. É um paradoxo que urge esclarecer. O sismo de 1755 é histórico, não instrumental, porque não foi registado por instrumentos. É difícil localizar o epicentro com precisão, porque não há registos das ondas sísmicas. E, mesmo quando há, é um disparate nos sismos grandes falar-se em epicentros. No caso deste de Sumatra, em Dezembro, a falha que o provocou tem mil quilómetros de envergadura. Mil quilómetros não são um ponto, é o dobro da extensão de Portugal continental! O que fizemos foi tentar estudar as estruturas da costa sudoeste portuguesa a fundo no Big Sets. A nossa margem não tem muitas estruturas activas. Aquela que foi encontrada e denominada Marquês de Pombal é a única naquele segmento, e isso torna-a especial, mas estávamos à espera que fosse bem superior a 100 quilómetros, e afinal tem uma extensão inferior a 70 quilómetros.
Não tinha a extensão suficiente para o papel que lhe atribuíam? Não tinha a suficiente para gerar um sismo como o de 1755, por isso tentámos perceber “se não foi ela quem é que foi?”. Começámos à procura das outras, e começámos também a olhar com outros olhos para os dados mais antigos que existiam. Chegou-se entretanto à conclusão de que a fonte do sismo seria dupla, pelo menos, e que teriam sido várias falhas a funcionar simultaneamente. Já estão cartografadas estruturas, como a Falha da Ferradura, que em conjunto permitiriam provocar um sismo como o de 1755 e já se sabe que estão activas. Talvez nunca se saiba exactamente onde foi a fonte, mas nenhuma delas parece unicamente responsável. O que provoca o movimento das falhas é o encontro, neste caso a colisão, das placas africana e euroasiática, da qual a Península Ibérica é o sistema ocidental. Neste momento África desloca-se em relação à península quase de Este para Oeste e isso provoca o deslizamento das estruturas, que são quase perpendiculares. Em terra também temos falhas e epicentros de sismos, mas as que têm originado sismos maiores são as localizadas no Sudoeste português.
Um dos últimos sismos sentidos em Portugal teve epicentro no Sudoeste, a 100 quilómetros da costa portuguesa... As falhas são sintomas de rupturas, e muitas vezes estão articuladas entre elas através de outras fracturas. Neste caso parece que terá sido uma dessas. Os colegas da Geofísica calculam não só o epicentro como o hipocentro, e ainda a maneira como a falha funcionou, aquilo que eles chamam o mecanismo focal do sismo. Factores que nos sugerem que esta falha terá sentido Leste-Oeste, e que se articula com as falhas principais na direcção Norte-Sul, as que em princípio têm gerado os sismos de maior envergadura nesta região.
Não se pode prever exactamente a ocorrência de um sismo, mas tem sido aceite a ideia de que estes ocorrem de acordo com ciclos temporais. No caso do de 1755, já se fizeram várias previsões... 50 anos, 250 anos... O que lhe parece? Creio que o intervalo de ocorrência mais consensual seja qualquer coisa na ordem dos mil anos. Mas estes cálculos eram feitos antes de se conhecerem as estruturas, e nós neste momento estamos à beira de ter mapeado as estruturas tectónicas activas principais. Pelo menos nas águas territoriais portuguesas estão bastante bem reconhecidas e foram cartografadas há pouco tempo, têm nome, como a do monte de Guadalquivir, a falha do Gorringe, a Marquês de Pombal. Foram descobertas fracturas com movimentação recente que deslocam o fundo do mar de aproximadamente 1500 metros na vertical, a Falha de Marquês de Pombal e a Falha da Ferradura.
O que vai ser feito com as imagens obtidas em Julho do ano passado? Um projecto que nós temos em marcha, que foi aprovado agora pela Fundação da Ciência e Tecnologia (FCT) e é dirigido pelo Luís Matias, é a manipulação matemática destas estruturas. Já conhecemos as falhas e a maneira como África se movimenta em relação à Península Ibérica, portanto não temos tudo na mão, mas temos duas coisas importantes. Não sabíamos quais eram as estruturas nem onde é que elas estavam nem qual era a sua orientação no espaço nem o seu tamanho. O que queremos fazer neste projecto é localizar estas zonas no mapa, caracterizá-las e a seguir pô-las a funcionar através de modelos matemáticos. Vamos fechando cada vez mais o leque das suposições. Podemos ver se o modelo é adequado para o passado e se se pode extrapolar para o futuro. O projecto foi aprovado há menos de um mês, mas teve um corte orçamental brutal, de 65 por cento. Se fosse após o tsunami de Sumatra talvez não tivesse tido um corte assim. Ficámos muito surpreendidos, porque é um projecto de previsão e que está a trabalhar sobre os melhores dados que existem nesta fronteira de placas. Estamos a contar com a participação e colaboração de especialistas de outros países. São métodos que no fundo vão ser utilizados de uma maneira pioneira neste laboratório que temos que é um laboratório natural. É uma margem muito peculiar e que pode ser um protótipo, que poderá dar dados muito interessantes quer para Portugal quer para a comunidade internacional.
Temos no entanto uma região no território nacional com uma elevada frequência sísmica, os Açores. Nos Açores não tenho trabalhado. É uma região que está na placa atlântica e o contexto sismo-tectónico é completamente diferente, porque não só está numa junção tripla de placas, a Euroásia, a americana e a africana, como além disso é uma região vulcânica. Há sismos que são nitidamente de origem vulcânica e outros que têm causas tectónicas, o que torna a coisa mais complicada de estudar. Mas do ponto de vista da idade geológica acaba por ser mais simples. Nós aqui estamos a trabalhar com estruturas que estão a funcionar hoje mas que têm até 300 milhões de anos. Hoje em dia conseguem determinar-se ocorrências sísmicas com margens de erro de apenas um ano, o que é espantoso.
Estas investigações podem encaminhar-nos para uma previsão dos sismos? A ideia é essa. Alguns dos campos de investigação vão nesse sentido. Para a sociedade civil o mais importante será a prevenção, se bem que há muito mais coisas que interessam. Há pessoas que trabalham essencialmente com modelos matemáticos, outras, como os investigadores da Geologia, que procuram caracterizar o objecto que gera o sismo.
Acaba de ser apresentado um projecto no âmbito da União Europeia que pretende instalar um sistema de alerta de tsunamis, com uma rede de estações, uma delas nos Açores, outra no golfo de Cádis. Que importância poderá ter um projecto desse tipo? Do ponto de vista da sociedade civil, creio que será da maior importância. Do ponto de vista tecnológico, é preciso criar o sistema que se vai colocar no fundo do mar. Depois é preciso determinar onde se deve colocar a estação. Em princípio devem ser multiusos, pois já que é uma coisa tão cara convém que ela sirva a vários interesses. Pode servir para a monitorização sísmica, oceanográfica, a nível físico e meteorológico, quer do ponto de vista biológico. Ela deve ser colocada num local onde seja possível uma boa interacção com as estações sismológicas em terra. E é bom ter um conhecimento dos fenómenos superficiais, que são aqueles que mais facilmente podem afectar a estação. Depois há que fazer algo que pode inclusive ajudar a pagar a estação, que é ter os dados acessíveis “on-line” para escolas, investigadores ou museus.
Por que é que um tsunami leva diferentes tempos a atingir a costa, consoante a região em que nos encontremos? As ondas do mar movem-se tanto mais rapidamente quanto maior a profundidade do mar, porque não interagem com o fundo. À medida que a profundidade diminui a velocidade diminui também. As ondas do tsunami viajam mais depressa a grandes profundidades. Elas não têm altura, praticamente. Quem estiver no alto mar nem vê que passou um tsunami, que tem a altura de um palmo...
É comummente aceite que a libertação de energia em pequenos sismos pode reduzir a probabilidade de um sismo maior. No caso das falhas do Sudoeste, o facto de estarem um tanto “adormecidas” é caso para preocupações? Eu acho que sim. A mim preocupa-me sempre saber que não há um sismo como o de 1755 há 250 anos.
Projectos de investigação sobre as falhas sísmicas ao largo da costa portuguesa, que envolveram cientistas portugueses, espanhóis e italianos
- BIGSETS, Big Sources for Earthquakes and Tsunamis (1998-2000) - MATESPRO, Major Tectonic and Sedimentary Processes on the Portuguese Margin (2000-2003) - HITS, High Resolution Images of Earthquakes and Tsunamis (2000-2001) - SWIM, Southwest Iberian Margin (http://www.swim.ul.pt/) - SWITNAME, Tectonic, Numerical and Analogue model of SW Iberia (2005-2006).