Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza
Quercus 1ª Sessão do Workshop «O Direito na Intervenção Ambiental» 19 de Março: Contra o Nuclear! XI Olimpíadas do Ambiente (2005/2006) XIII Jornadas de Educação Ambiental
   21-05-2006 contacte-nos | pesquisa 
 
DESTAQUE
Correntes: Ecologia Profunda

"Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os factos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido", escreveu Thoreau no seu "Walden ou A Vida nos Bosques". Thoreau que foi um dos inspiradores da Ecologia Profunda. Como Ralph Waldo Emerson ou, noutros domínios, Aldo Leopold ou ainda Espinosa e o seu Panteísmo, conforme refere Jorge Marques da Silva na sua análise incluída no livro "Éticas e Políticas Ambientais" organizado por Cristina Beckert e Maria José Varandas.

Autores de referência da Ecologia Profunda há três: o fundador Arne Naess, George Sessions e Bill Devall. Este dois últimos, autores de um livro recentemente editado em Portugal, "Ecologia Profunda - Dar Prioridade à Natureza na Nossa Vida".

Mas afinal o que é a Ecologia Profunda? O Jornal Quercus Ambiente foi procurar saber mais sobre esta corrente, em leituras e em conversa com Cristina Beckert, presidente da Sociedade de Ética Ambiental e professora de filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

A natureza como um todo

"A ecologia profunda surge nos anos setenta, com um artigo de Arne Naess, um norueguês, que pela primeira vez distinguiu entre aquilo que designou como Shallow e Deep Ecology, portanto uma Ecologia Superficial e uma Ecologia Profunda. E, a partir daí, de algum modo esta terminologia passou a ser adoptada", conta Cristina Beckert. E desenvolve: "O que é que este autor entende por Ecologia Superficial e Ecologia Profunda? No fundo, a Ecologia Superficial, para o autor, são aquelas preocupações ambientais que estão fundamentalmente centradas em preservar os recursos naturais para a utilização do ser humano. O que interessa é a preservação do/pelo desenvolvimento humano e não propriamente a natureza em si. Ora, aquilo que ele propõe é precisamente uma atitude diversa, ou pelo menos mais profunda, daí é que adoptaram a designação de Ecologia Profunda, no sentido de a nossa relação com a natureza não ser uma relação meramente superficial, quase que de instrumentalização da natureza para os nossos interesses, mas que consiste antes em ver na natureza um valor em si mesmo, ou seja há um valor intrínseco da natureza. Esta atitude implica sobretudo uma crítica e um pôr um causa da tendência antropocêntrica de toda a cultura ocidental, com algumas excepções, como é óbvio, e implica uma atitude holista, de ver a natureza como um todo, ver o ser humano como parte integrante da natureza e não como um ser à parte, fora da natureza, que a domina e que a controla".

Este questionar amplo é o que Jorge Marques da Silva realça na distinção entre Ecologia Profunda e Ecologia Superficial, considerando que esta está sobretudo relacionada com o "nível de problematização alcançado pelos indivíduos, isto é, à extensão em que podem e conseguem, de facto, coerente e consistentemente, ligar as suas visões, práticas e acções às suas crenças últimas ou assumpções fundamentais".

O autor esclarece ainda que a expressão Ecologia Profunda, considerada uma corrente da Ética Ambiental, tem sido utilizada "para designar três objectos distintos", o que por vezes tem criado alguma confusão: "o meta-movimento ambientalista e os estilos de vida associados à Plataforma para a Ecologia Profunda; a metodologia de aprofundamento das problemáticas e soluções para a crise ambiental desenvolvida por Arne Naess; e a filosofia ambiental por ele criada, (seu) fundamento último para a acção ambientalista, designada por Ecosofia-T".

Auto-realização e igualdade biocêntrica

De acordo com Bill Devall e George Sessions, dois autores de referência da Ecologia Profunda, "Arne Naees elaborou duas normas últimas, ou intuições, as quais não podem ser derivadas de outros princípios ou intuições". Segundo os autores, "chega-se até elas pelo processo do interrogar profundo", que Jorge Marques da Silva designa por "inquérito ontológico sobre a natureza da Natureza", opondo-o a outros da Ética Ambiental, "sobre o valor da Natureza". Essas normas últimas são a auto-realização e a igualdade biocêntrica.

Para Bill Devall e George Sessions a auto-realização começa "quando deixamos de nos compreender a nós próprios como egos isolados e em competição estreita, e nos começamos a identificar com outros seres humanos" mas exige "uma maturidade e um crescimento maiores ainda, uma identificação que ultrapassa a humanidade, até incluir o mundo não humano". Por sua vez, a "intuição da igualdade biocêntrica consiste em pensar que todas as coisas na biosfera têm um direito igual a florescer, e a alcançar as suas próprias formas individuais desabrochadas, o direito à auto-realização no interior de uma mais vasta realização do Eu. Essa intuição básica é a de que todos os organismos e entidades da ecosfera, enquanto partes inter-relacionadas do todo, são iguais em valor intrínseco".

As duas normas últimas, para estes dois autores, "sugerem uma visão da natureza da realidade, e do nosso lugar como indivíduos (muitos num só) no mais amplo esquema das coisas". Têm também diversas implicações, contrastantes com a visão dominante do mundo, de domínio da natureza pelo homem, propondo uma nova harmonia. Por isso, Arne Naess e George Sessions procuraram definir uma síntese dos seus pensamentos e suas implicações em oito princípios básicos, abertos, nos quais se baseia a vertente prática da Ecologia Profunda.

Eco-regionalismo

De acordo com Cristina Becker a Ecologia Profunda "tem diversas manifestações, a nível político, económico, social, filosófico, religioso". Segundo a presidente da Sociedade de Ética Ambiental, "o que preconizam fundamentalmente é, a nível do poder, uma descentralização, que designam como eco-regionalismo. Dar o poder às comunidades, às pequenas comunidades. Isto implica por sua vez um grande respeito pela preservação da diversidade, não só biológica mas também cultural, que obviamente com a tendência para a globalização vai desaparecendo cada vez mais. Portanto, o que está aqui posto em causa é toda a macroeconomia, a macropolítica, na perspectiva da reabilitação dessas pequenas comunidades com a sua identidade própria. A nível social, fazem uma crítica muito acérrima à sociedade consumista. O que nos dizem é que há necessidades básicas do ser humano, que não são só comer, e dormir e vestir, envolvem um leque de algum modo vasto, mas não tão vasto como as sociedades de consumo pretendem. As sociedades de consumo criam necessidades. É precisamente contra este excesso de necessidades a serem satisfeitas que se insurgem. Consideram que há que limitar um leque de necessidades realmente humanas, que pertencem ao ser humano, e acabar com esse supérfluo de criação de contínuas necessidades para consumo. Isto implica por sua vez, uma filosofia de vida muito virada para a auto-suficiência, tanto individual como comunitária. Claro que muitos apelidam isto de uma utopia".

Nesta perspectiva "as tecnologias são toleradas, desde que não ponham em causa esse equilíbrio da natureza, do todo. Há uma opção clara ou por um mínimo de tecnologia possível ou por aquela tecnologia que não é prejudicial à natureza, como as tecnologias alternativas, que não são agressivas para a natureza".

Segundo Cristina Beckert, para os defensores desta corrente, "a nossa sociedade está toda ela sustentada, digamos assim, pela tecnociência. Eles procuram pôr em causa a validade e, em última instância, a eficácia desse modelo técnico-científico, e propor um estilo de vida que tem uma sabedoria muito própria e pessoal de cada um. Do ponto de vista estritamente religioso, eles procuram inspiração em várias fontes religiosas".

Em Portugal não existe que se saiba, uma expressão organizada que se reclame da Ecologia Profunda. Existem, diz-nos Cristina Beckert "comunidades organizadas segundo estes ideais nos Estados Unidos. É difícil a sua subsistência, mas parte de defender um ideal é sobretudo conseguir levá-lo à prática. Agora, sobretudo é óbvio que estas correntes têm a função de agitar as mentalidades, a função crítica, de chamar a atenção. E obviamente também pelo exemplo. Não me parece possível levar estritamente à letra, se quisermos, este ideal. Mas como ideal ou como utopia que serve para mexer com as pessoas parece-me positivo".

O que existe no nosso país é a corrente mais ampla da Ética Ambiental, nomeadamente com a Sociedade de Ética Ambiental que, como nos informa Cristina Beckert, "surgiu por volta de 2000 e é uma sociedade que se disse sempre de retaguarda, no sentido de que procura reflectir sobre estas questões de valores, de ideias, de categorias, e não de intervenção imediata".

Sofia Vilarigues
QUERCUS Ambiente nº. 16 (Outubro 2005)